MITO DE FUNDAÇÃO DA ALENRIO
Carlos Pedroso dos Santos
Renato Pereira
Certo dia o Minuano, num passado muito distante, depois de transpor os Andes para ganhar a liberdade de muitos horizontes, fizera nascer um verde poncho com as sementes trazidas no bolso de seu chiripá, para com ele cobrir a dilatada Província de São Pedro, a Pátria do Tufão.
Seu pai, o velho Tufão, não queria vê-lo partindo, pois sabia que o filho, ao partir, tomaria o gosto pela aventura, e talvez para a casa não retornasse. Mas o moço Minuano, em cujas veias corria o anseio pela liberdade, esperou o pai dormir, e transpôs a cordilheira, para na Província de São Pedro estabelecer sua morada.
Por muitos dias andara garboso a espadanar as folhas das palmeiras, a cochichar segredos de amor aos seus ouvidos. Porém, certo dia, quando o sol já se punha, incendiando nuvens com a mais vívida púrpura, sentira o cansaço a mexer com seus nervos, e nem forças mais tinha em seus pulmões para assobiar a canção da liberdade que tanto almejava.
Deitado sobre o verde poncho que ele mesmo havia criado, sentiu que as forças aos poucos lhe abandonavam. Pensou em voltar à casa paterna e, ajoelhado aos pés do velho Tufão, implorar que lhe perdoasse.
Sabia, no entanto, que o pai não lhe perdoaria a insensatez de ter abandonado sua casa para se aventurar por plagas desconhecidas. Por outro lado, não suportaria a humilhação de ter fracassado em sua busca pela liberdade que tanto sonhara.
Na noite de breu que se esvaía ante seus olhos — pois a lua parecia também castigá-lo pela desmesurada ousadia de ter deixado a casa paterna — fechou os olhos para acostumar-se com a escuridão, para, mesmo tateando, procurar um abrigo mais seguro e acolhedor, onde pudesse descansar seu corpo fraco e alquebrado de tantas andanças.
Foi então que, mesmo com os olhos fechados, avistara uma luminosidade infinda, que pairava muito longe, nos confins do horizonte, como a lhe indicar um abrigo seguro, onde a lua também descansava em sua cama de prata.
De ímpeto levantou-se de seu letargo e, buscando reunir forças que não tinha, seguiu pela noite adentro, vadeando rios, planícies e florestas, em busca daquela visão esplêndida que parecia marcar seu caminho rumo à liberdade suprema.
Durante toda a noite caminhou. Tinha pressa de chegar. Até mesmo o frio que trazia em sua essência — e que sempre alimentara sua alma —, a cada passo que dava, parecia diminuir, junto com suas forças. Porém, a vontade de ganhar um abrigo seguro para poder repousar e, de repente, ali estabelecer sua morada, era maior que a canseira que consigo trazia.
Já era madrugada quando escutou vozes e tudo o que as envolvia. Repentinamente, o encantamento tomou conta de sua alma. Em sua frente, com muita intensidade que quase o cegava, estava uma mata de sarandis, que guardava o grande rio, de cujas águas saíam as vozes que nitidamente seus ouvidos escutavam.
Sentiu a emoção tomar conta de sua alma. De seu pai, muitas vezes ouvira a lenda de um grande rio que os índios chamavam de Yurugua’y — que era também o rio dos caracóis, o “rio dos pássaros pintados.”
As vozes que vinham de seu leito davam-lhe certeza de que havia encontrado o rio que falava, não com palavras, mas com murmúrios profundos, como se estivesse a ninar a memória da terra, das matas, das estrelas e da lua cheia que vinha em suas águas se espelhar.
Ali, nas matas de sarandis, resolveu o Minuano estabelecer sua morada, para com encantamento escutar as vozes que vinham daquele rio, que por sua vez passou a chamar de Uruguai, respeitando o nome indígena a ele atribuído.
Sentiu que ali deveria permanecer, pois durante as noites, ao fechar os olhos para dormir, sentia ser arrebatado pelo clarão intenso que pairava sobre as matas de sarandis, guardiãs daquele rio.
Na confluência das águas com as matas densas do noroeste, segundo seu pai, havia nascido Yara. Índia pertencente ao clã guarani, trazia em sua garganta as mais lindas notas musicais e, com seu canto, enchia as florestas de magia e doces mistérios.
Todavia, ao perceber que seu nome era esquecido por todas as tribos que ali viviam, deitara-se sobre a correnteza do grande rio e, antes de ser por ele tragada, dera-lhe a incumbência de continuar cantando, para com seu canto envolver as matas de sarandis, cujas copas em seu leito se curvariam em reverência para ouvi-lo.
Era bom estar ali, para escutar a maviosidade do murmúrio das águas que falavam, e que, em suas noites de canseira das muitas andanças, vinha-lhe aos ouvidos em forma de uma linda canção de ninar.
Resolveu, então, certa noite, emprestar o vento que habitava em sua essência para aquelas vozes que vinham do rio. Queria que todo mundo tivesse o encantamento que ele tinha, ao ouvir aquela maviosa cantilena. Por isso, soprou por dias a fio sobre as águas do Rio Uruguai, até transformar aquelas vozes num mito, para encantar a todos que tivessem a felicidade de ouvi-las.
Mal sabia o Minuano, que aquelas vozes e cantares tinham o dom de misteriosamente atrair, como outrora fazia Yara, todos os animais e pássaros que de muito longe vinham, ao escutarem a maviosidade de seu canto. E foi assim que um canarinho amarelo, cruzando os céus muitas léguas ao norte, em busca de um chão onde seu cantar pudesse ter o mesmo encanto da voz que a brisa mansa trazia aos seus ouvidos, ali chegara. Ao encontrar uma ave nativa que havia partido do noroeste para levar para todos os recantos, através de suas cordas vocais, a melodia que das águas emanava, ambos formaram um lindo dueto, e a eles vieram juntar-se milhares de outros pássaros, formando assim um coro de sublime encantamento com as águas do grande rio.
E assim, pássaros vindos de todas as cercanias, atraídos pelas VOZES DO URUGUAI, em coro entoaram cantos de angelical ternura. Enquanto cantavam, eis que um luzeiro infindo pairou novamente sobre as matas de sarandis, onde se viu, em letras enormes um letreiro formando a palavra ALENRIO. Estava assim criada a ACADEMIA DE LETRAS DO NOROESTE DO RIO GRANDE DO SUL.
As estações se sucederam. Alguns chegaram guiados por antigos versos; outros traziam lendas dobradas no bolso. Homens e mulheres também vieram, escrevendo ao compasso das águas — e cada um ofertou sua palavra como quem planta para a subsistência. Novos pássaros vieram de todas as periferias da rosa dos ventos, como viageiros do tempo. Trouxeram na bagagem o latim e, guiados pelo vento cantor, entoaram seu canto em conjunto com a voz ancestral. Dizem que a Alenrio nasceu assim: não de decreto, nem de papel selado. Mas da magia e do encantamento.
O tempo passou, e eis que um dia sonhou-se com a toponímia do Rio Uruguai, com seu traçado ornamentado por ramos que simbolizam as plantações da região. Ante seus olhos todos viram o azul escuro tomar sua exata proporção, para representar as águas do rio, de onde o vento trazia aos seus ouvidos uma suave cantilena. Depois, viram surgir o azul claro para simbolizar o horizonte, e por último, o verde claro para simbolizar as matas e o relevo da região.
Enquanto o brasão se forjava, e as águas do rio sussurravam um hino aos ancestrais e encarregados de salvaguardar a literatura, e no azul do céu delineava-se o acrônimo Alenrio. Mesmo em sonhos, teve-se a certeza de que aquilo que se desenhava diante dos olhos representava o profundo vínculo entre as raízes culturais que entrelaçam as margens do Rio Uruguai ao Estado do Rio Grande do Sul.
A academia de letras recém-formada encontrou ali um aprisco seguro e verdadeiro entre escritores de toda a região. A Alenrio que se propôs a atuar como um verdadeiro parlamento literário continua a acolher novos pássaros migrantes comprometidos com a preservação e divulgação da literatura e do vernáculo. Seu canto conjunto embala a terra, as matas, as estrelas, as águas do rio e a lua que nela se espelha.